“Você ainda escreve?”

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A pergunta, num encontro rápido no meio da rua, bateu com força. Algo em mim sentiu o golpe: não me lembro se o estômago, o peito ou a garganta.

Desaforo se leva pra casa. E cá estou, diante da tela, fazendo o que mais me aquieta e me redime, me reluz e me conduz, o que mais reafirma em mim minha própria vida: escrever, escrever, escrever. Uma rosa é uma rosa é uma rosa, escreveu Gertrude Stein.

Faz algum tempo que esta foto espera por mim. A encontrei no asfalto da 308 Sul, bem perto da banca. A mulher jovem e bela tem traços que me lembram as personagens dos grandes romances russos.

Maçãs do rosto bem marcadas sugerem personalidade resoluta, quase destemida, mas sem traço de arrogância. Os olhos mirando o longe, não com temor ou indiferença nem com soberba ou súplica. Olhos de suave maresia, nascente de águas límpidas. O sorriso parece confirmar o que os olhos veem. Uma plenitude que pode ter durado o átimo da foto, plena de todo modo.

O pescoço é forte como o rosto, mais até. Parece suportar, olimpicamente, qualquer baque – “você ainda escreve?”. É tão vigoroso que parece sustentado em músculos. Com um pescoço desses, nada fica preso na garganta. A moça da foto aceita os fatos ou reage a eles, de acordo com as circunstâncias.

O corte da blusa, fechada até o pescoço, pressupõe filiação religiosa. Volto a pensar nas personagens de Dostoievski, Tolstoi, Tchekhov. Corpulenta, de ombros largos, é contudo sutilmente feminina. As sobrancelhas naturalmente desenhadas, os cabelos presos em coque, e a franja marota completam a imagem que faz dias está sobre a mesa esperando que um dia eu volte a escrever.

 

 

 

Crônica exclamativa

exclamacao

Nelson Rodrigues!
Agora pode!

Renegado pela imprensa objetiva, concisa e asséptica, o ponto de exclamação esteve exilado dos textos jornalísticos durante décadas. Dizia-se, e ainda se diz, que era pobreza vocabular, intromissão subjetiva. Era brega e, definitivamente, proibida nos títulos e textos da imprensa respeitável. Mesmo se a Nasa descobrisse que amanhã um meteoro gigante colidiria com a Terra e nos transformaria em pó, ainda assim, a manchete teria de fazer cara de paisagem: É o fim. Todos mortos. A vida na Terra acaba hoje.

É o fim! Todos mortos! A vida na Terra acaba hoje! Viva!! Já!!

Viram a diferença?

A exclamação tremulou nas manchetes dos jornais no século 19 e foi vista até meados do século 20, quando os modernistas inventaram a edição concisa e objetiva. Antes, havia retumbado (e continua até hoje, impávida!) nos poemas românticos. O mais importante poema abolicionista termina em turbilhão de exclamações:

Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

É Castro Alves convocando os brasileiros a acabar com o tráfico de escravos nos navios negreiros.

Talvez para romper com a tradição romântica, os modernos do século 20 expurgaram o ponto de exclamação dos textos jornalísticos.

Teve gente que não estava nem aí. Poucos, como Nelson Rodrigues. O anjo pornográfico está para o ponto de exclamação como a Terra está para o Sol. Sem a exorbitância solar, o planeta não existiria. Sem os exageros exclamativos e exclamatórios do dramaturgo/contista/cronista, Nelson não seria Nelson. No conto O ladrão, o marido mata o invasor de sua casa acreditando que era um gatuno. A mulher adúltera entra em êxtase diante do amante abatido com uma coronhada de revólver:

— Ainda vive. Acabe de matá-lo com isso. Vamos ser assassinos juntos! Anda! Dá-lhe! Dá-lhe! Na cara! Quero na cara!

Nelson Rodrigues!

O ponto de exclamação ainda não voltou aos jornalões, porque eles continuam jornalões. Mas a internet foi invadida pela haste com um ponto embaixo. Eles estão nos textos, nos comentários, nas conversas entre dois, nas paixões políticas, no ódio descomunal!

O ponto de exclamação está até na saudação mais frugal: “Oi!”, “Bom-dia!”, “Tudo bem!”. Graças à frieza atávica do texto virtual. Nunca se sabe como está o ânimo do interlocutor. Para quebrar o gelo de cara, tasca-se uma exclamação.

No começo, achei meio fingidinha essa exclamação assim, de pronto. Aos poucos, fui percebendo que o palitinho de pé com um ponto embaixo é o jeito mais cordial de se iniciar uma conversa, principalmente se for profissional ou com quem a gente não tem muita intimidade. É um quebrador de gelo, até no formato.

Encontrei na internet um ensaio do professor Gabriel Perissé, da USP, sobre o uso da exclamação em textos pedagógicos. Foi aí que perdi totalmente a vergonha de usar o ponto de exclamação. Pois se até João Cabral de Melo Neto, com seu rigor estético, e suas imagens feitas de cimento e ferro, se até ele admitiu a exclamação, por que não esta derretida cronista? “Todo mundo aceita que ao homem cabe pontuar a própria vida: que viva em ponto de exclamação (dizem: tem alma dionisíaca)”.

Se João Cabral me deu permissão, me sinto livre para continuar exclamando, mesmo sem o uso de um dos sinais mais plásticos da pontuação. Nesse quesito, só perde, no meu gosto, para a interrogação.

A propósito, conta-se que o diálogo mais curto já escrito foi:

— ?

— !

É um escritor perguntando ao editor se seus livros foram vendidos. E o editor lhe dando boas notícias.

Reconciliada com as exclamações, falta só eu descobrir que os adjetivos perderam a má-fama. Também os amo. Exclamativa, adjetiva e derramada. Viva!

O anarquista e os cinco centavos

Um anarquista amigo meu, dos muitos novos amigos da minha vida de jornaleira, me disse que eu, nos meus anos de Crônica da Cidade, fazia da vida um texto.

Bingo!

Tive um pouco de raiva dele. Como assim, eu é que deveria ter articulado essa frase. Eu estava indo nesta direção, nas minhocações recentes, e ele, catapluft, sai na minha frente e me resume antes de mim. Adorei, mas odiei.

Do lado de fora da Crônica da Cidade, a vida ficou insípida. Trabalhosa, surpreendente, movimentadíssima, mas em estado de suspensão.

Não era porque estava ruim. Era porque eu não sabia viver sem um texto pra me sustentar. O texto vivia por mim.

Precisei me divorciar dele, divórcio abrupto e litigioso, porque não desejado por ambas as partes, para – sem meu maridão provedor, protetor e dominador – eu chegar ao mundo por inteiro, possivelmente pela primeira vez.

Agora, sem ele, era eu comigo mesma. Começar de novo e contar comigo, como na música.

Tenho aprendido, e é dos aprendizados, um dos mais importantes, a lidar com o dinheiro. Com o salário sagrado na conta todo mês, eu não sabia o valor do dinheiro. Eu sabia que não sabia, mas não sabia o que fazer com esse não saber.

O que me leva a uma cena de Meu nome não é Johnny, filme e livro inspirados na biografia de João Guilherme Estrella, traficante de classe média do Rio de Janeiro, que atuou nas décadas de 80 e 90. Preso, Johnhy diz que precisava da cadeia para, finalmente, se libertar do tráfico. De outro modo, não conseguiria.

Eu precisava ficar sem o salário para saber o valor do dinheiro. Sempre fui bem paga pelo meu trabalho, disso não posso reclamar (aliás, tenho muito pouco, quase nada, a reclamar de meus ex-patrões). 

Hoje, naqueles 23 metros quadrados, cada cinco centavos tem valor – de exatos R$ 0,05. Uma das primeiras coisas que jornaleiros amigos me disseram, e que repetem entre si, é que em banca de revista se ganha centavos. Como hoje, boa parte delas sobrevive da venda de balinhas, picolés, refris e parentes próximos, a renda surge de grão em grão.

Depois que saltei do texto para a vida, pude lidar também com o dinheiro dos outros, com o modo como cada um lida com o dindim. Cada um tem o próprio jeito de tratar o dinheiro e esse jeito tem tudo a ver com  o modo como a pessoa se relaciona com a vida. (Os psicanalistas amigos meus vão me odiar por essa análise chinfrim).

O dinheiro tem um poder simbólico de magnitude que não consigo alcançar. Não é à toa que 1% da humanidade acumula riqueza maior que a dos outros 99% . Para que mesmo uma pessoa precisa de tanto dinheiro se nem se ela vivesse 1 mil anos daria conta da gastança? Vai saber. O que dá pra perceber é a patética orfandade dos viciados em acumulação de bens. Como se quisessem comprar a eternidade.

Na banquinha, de cinco centavos em cinco centavos, vou somando Conceições vividas às Conceições escritas. Tem sido bom.

Seu Carlos

Observe o homem que todas as manhãs limpa o laguinho do Burle Marx, na 308 Sul. Barba branca, roupa surrada, seria um velho e dedicado jardineiro, e é. Mas é também um servidor público do Banco do Brasil, graduado e aposentado. Tem os braços e o tórax rijos, o que sugere dez ou mais anos a menos do que o tanto de vida já vivida. Carlos Alberto Albuquerque de Macedo Costa já venceu oito décadas e mais um pouco. Quem o conhece desde os primeiros tempos de Brasília sabe de seu despojamento, iguaria servida com discreta e firme altivez.

Seu Carlos é guardião não apenas do laguinho precioso que a Caesb, de vez em quando, ameaça deixar à míngua. O mineiro de Conquista tem na memória o mais detalhado inventário do paisagismo da quadra-modelo. Identifica cada uma das espécies plantadas no retângulo, sabe a idade e o comportamento das hoje maduras árvores de troncos robustos e copas portentosas. Conhece o que está acima e abaixo da terra.
Ele me conta e me mostra, por exemplo, que ao lado da banquinha existe um salão subterrâneo três vezes maior do que os meus 23 metros quadrados. É uma caixa d’água construída pelo Banco do Brasil para compor um sistema auto-suficiente de irrigação dos jardins e gramados. Está abaixo do chão do jardim do bloco D, o único de quatro andares e apartamentos de 100 metros quadrados e dois quartos.

Poucos anos, não mais que dois, depois de pronta a superquadra, o Banco do Brasil transferiu a manutenção do paisagismo para a Novacap que, segundo conta seu Carlos, retirou as duas bombas de irrigação e a caixa deixou de ter serventia. A água continua lá, imagina o jardineiro, como um poço arqueológico do começo de Brasília. A construção subterrânea tem uma ante-sala – talvez maior do que a banquinha – onde os jardineiros da Novacap até hoje guardam equipamentos.

Quando começou a ser construída, entre o fim do anos 1950 e começo de 1960, a SQS 308 tinha uma senhora salvaguarda: destinava-se a abrigar os servidores do então poderosíssimo Banco do Brasil. O Banco Central não havia sido criado e o BB, portanto, era O banco. “Os outros eram tamboretes”, diz seu Carlos, repetindo um chiste da época. Juscelino, lembra-se o jardineiro, dizia que era preciso trazer para Brasília a cúpula da Presidência da República e o Banco do Brasil. “O resto vem atrás.”

Daí se explica por que a 308 Sul é a quadra que tem todos os equipamentos urbanos que Lucio Costa projetou para as unidades de vizinhança, conjunto de quatro quadras que teriam a autonomia de pequenos bairros modernos.

Além de ter jardim de infância, escola classe, escola parque, praças, laguinho, Igrejinha, biblioteca próxima, cinema bem perto, clube de vizinhança na esquina, conjunto cultural na 508, a 308 tem, debaixo da terra, uma caixa d’água do tamanho de um pequeno apartamento.

Ao saber da descoberta arqueológica, um jovem cliente da banca sugeriu: “Dá pra esvaziar e fazer festa!”. Ou, quem sabe, um museu vivo da memória candanga da 308 Sul. Ou qualquer coisa que couber na imaginação de uma cidade moderna e já cheia de segredos.

 

Gil e Fran

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Nem nos meus mais doces devaneios, poderia inventar um Gil e uma Fran ao mesmo tempo na minha vida. Gilberto de Souza, 22, e Franciele Alves, 20. Fran é filha de marceneiro com cuidadora de idosos, Gil, de servidor público com costureira. São meus mais importantes parceiros na banquinha. Fran quase não é mais. Amanhã, ela toma o ônibus para Goiás Velho, ou Cidade de Goiás, como preferem os goianos. Vai fazer Química na Universidade Federal de Goiás, campus da antiga capital.

Fran tem resistência sertaneja – nasceu em Montes Claros,  norte de Minas , onde a Terra treme,  a temperatura chega aos 40 graus à sombra e os pequis são carnudos e de sabor ainda mais intenso que os de Goiás. Franciele veio para Brasília disposta a um tudo ou nada: deixou a família boquiaberta e veio estudar para o Enem e tentar uma vaga numa universidade pública. Conhecia um casal que a hospedou até que encontrasse trabalho e moradia.

Veio morar comigo, para ajudar a cuidar de minha mãe. Acabou sendo minha principal parceira na banca. Durante semanas, nós duas carregamos todas as revistas da banca de dentro para fora e de fora para dentro, até que a reforma ficasse pronta. Fran nunca reclamou de nada. Sorria, ria e gargalhava nos muitos apertos que nós vivemos.

Miúda e aparentemente tímida, Fran esconde  tenacidade e  sabedoria raras para quem acabou de sair da adolescência.

Depois de um ano de muita ralação, de persistência e paciência, Fran vai começar a viver, como ela mesma diz. Veio sozinha para Brasília e sozinha foi para Goiás, fez matrícula, arrumou lugar para morar e trabalho. Diz que vai sentir falta da banquinha, e eu fico toda-toda.

Gil é límpido como um olho d’água. Tem o coração aberto como se nunca tivesse tido uma decepção. Nasce novo a cada dia. Mesmo quando se atrasou para chegar à banca porque tinha sido assaltando no ponto de ônibus no Novo Gama. (Gilberto sai de casa às 4h30 para não perder a hora e não pegar congestionamento). Puseram-lhe um revólver na cabeça, levaram os documentos e “sete reais, dona Conceição, sete reais!”. O celular ficou onde estava: entre o zíper e a pele.

Se Fran vai embora amanhã,  Gil também não demora a deixar a banquinha. Está fazendo o curso de brigadista e vai prestar concurso para bombeiro militar. Não dorme de noite preocupado com as provas. É casado, não tem filhos: “Quero me estruturar primeiro”.  Brinca de vídeogame com o sobrinho nos fins de semana. É evangélico da Igreja Universal, porém jamais fez nenhum proselitismo religioso ou julgamento moral – não que eu tenha ouvido. Mas desconfia que o relógio de parede tem o “caperoto” no corpo. Vive caindo sem razão aparente. Atrasa, adianta. Parece ter vida própria.

Se deixar, Gilberto gasta todo o salário comprando livros da banca. Ele se apaixonou por um deles, o “Uma luz na história”, biografia do engenheiro Joffre Mozart Parada escrito pela Nina Tubino. Sozinho, descobriu o primeiro mapa geopolítico do Distrito Federal, que Joffre desenhou com o também engenheiro Janusz Gerulewicz com a demarcação aproximada das fazendas do quadradinho. Giberto Já vendeu uns três exemplares da biografia, só de mostrar ao cliente a sua incrível descoberta.

Acampada no meio da rua, sigo descobrindo anjos caídos das nuvens. E como elas, eles vão embora.

 

O corpo e a cidade

São quatro as escalas do meu habitar o mundo: o corpo, a casa, a cidade e a natureza. São os meus residencial, bucólico, gregário e monumental. Em cada um deles, sou uma. É na soma de todos eles que me certifico do meu lugar no mundo – um mesmo corpo ocupando vários lugares no espaço e, em cada um, um modo de existir.

É no contato do corpo com ele mesmo, com a casa, com a cidade e com a natureza que eu me percebo. Não preciso pensar para existir, basta que eu ocupe o concreto do corpo, da casa, da cidade e de tudo o que nos acolhe, o universo que um Lucio Costa divino inventou.  Existo, logo posso pensar.

Faz algum tempo, estava nunca cadeira de dentista, tomando um monte de anestesia para uma cirurgia demorada e complicada, quando a assistente do dentista teve a delicadeza de abrir as persianas para que eu pudesse ver o céu. De outra vez, num exame ecográfico de rotina, deu-se o mesmo. Nas duas vezes, foi o azul do dia que me tranqüilizou.  Já não me importava tanto o que viria. Eu estava viva, aqui e agora. Ali e naquele momento.

É por isso que, todas as manhãs, quando abro o estojinho laranja e me encaixo no fundo dele para começar a peleja, confirmo o meu existir. Há um lugar físico, o cruzamento dos meus eixos – do corpo e da cidade – que me reinventam. Antes eu também existia, mas agora esse existir é inescapavelmente concreto. Como se eu fosse o pedreiro da minha construção.

Em qualquer lugar aonde eu for, será no encontro do corpo com a cidade que estarei viva. Antes e depois, será só um vácuo. Foi a cidade, Belém, Goiânia e Brasília, que me salvou. Digo no singular porque é a condição de cidade quem me salva. Como se eu fosse um pescador de miúdas urbanidades. E nós, brasilienses, sabemos o quão árduo é existir no vazio e na monumentalidade.  Um pescador perdido no mar. Terrível, porém fundante. Quem experimentou a perdição nas vastas águas de Brasília nunca mais existirá sem elas.

 

 

 

BsbLivros, a lojinha dos amigos

Vivaldo de Sousa e Renato Ferraz criaram uma empresa, a BsbLivros, como parte de um curso de empreendedorismo do Sebrae. Eles estão vendendo livros do acervo da Banca 308 e fazendo as entregas em domicílio. É este o diferencial da BsbLivros, títulos sobre Brasília entregues na casa do leitor.

Vejam na fanpage https://www.facebook.com/Bsblivros2016/ a lista de obras que podem ser compradas entre hoje, sexta, 5 de fevereiro, e amanhã.

Dois franceses e um desejo

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Dois franceses de bermuda chegam à banquinha acompanhados de Maria Inez Joo, guia de turismo. Estão de volta a Brasília e desta vez vieram para mirar com mais cuidado os blocos residenciais da 308. Clement Dirie, historiador de arte, e Julien Eymeri, editor de publicações de arquitetura, estão namorando os apartamentos da quadra-modelo. Estudam a possibilidade de comprar um deles. Não pensam em trocar Paris por Brasília, mas querem ter um imóvel na superquadra de Lucio Costa. Algo como ter uma obra de arte na parede da sala. Só que do outro lado do oceano, de concreto e vidro, pendurada em pilotis, rodeada de gordas copas de árvores, envolvida em volteios de passarinhos.

As superquadras são uma experiência urbana que ainda não se realizou em sua inteireza, como se os brasilienses ainda não estivessem preparados para ela. Ou os brasileiros ou os franceses ou os gregos. É como se o urbanista, ao projetar o conjunto de moradias, equipamentos urbanos, parques, jardins, calçadas, tivesse inventado o mundo para os homens que ainda teriam de ser inventados – ou melhorados. Não sou eu quem digo, embora concorde. São os dois franceses, em livre tradução da Maria Inez. Superquadras para um futuro que talvez não se realize. Uma miragem perfurada de cobogós.

Peço uma foto. Um deles põe a mão no ombro do outro e diz que é um tipo de pose que não fariam em Paris. Se é para ser utópico que seja por completo. Há um desejo idílico de deixar um apartamento sempre à espera do casal. Compram livros e camisetas alusivas a Brasília e se despedem com largos e límpidos sorrisos. Em breve, voltarão.

Pornocrônica

Desde que cheguei à banca não se vendeu mais nenhum exemplar das revistas e dvds pornográficos. Não por eventual ataque de moralismo da jornaleira. Talvez por constrangimento dos clientes.

Pra quem não conhece, banca vende revista em consignação. Devolve o que não foi vendido. É um trabalho miúdo, chato e importantíssimo o da devolução do que ficou encalhado. Não devolveu, pagou.

Na semana passada, sumiram dois exemplares do Guia do Orgasmo Feminino. Dele e só dele. Se eu soubesse que eram objeto de desejo, tinha exposto as obras em lugar de mais fácil acesso.

Para não constranger os senhores, as senhoras e as crianças que frequentam a banca, os títulos picantes ficam no ponto mais alto da prateleira, num canto onde só os olharem mais desejosos conseguem alcançar.

(Pornoparênteses para alguns dos títulos: Alucinada por frango assado, Traveca na escadaria do prédio e O importante é botar na urna são alguns dos títulos disponíveis. Seriam pornográficos, não fossem bisonhos.)

Na respeitável banquinha da 308, o que mais se vende são palavras cruzadas, seguidas de revistas de celebridades. Fico pensando que, quando não houver nem títulos safados nas bancas, haverá palavras cruzadas. É o papel para além da leitura. Há um jogo lúdico que envolve o tato e a escrita, a caneta e o papel, o raciocínio e a abstração do manuscrito que talvez deem mais longevidade aos impressos.

Já tentou fazer cruzadas online? Parece uma viagem do nada a lugar nenhum. É onde o virtual se realiza no que de mais vazio ele tem. Como o Sexo tecnológico, título de uma das matérias pornôs.

E se os adultos fazem de conta que não veem as revistas pornográficas, as crianças tiram proveito. Dois meninos, de aproximados sete anos, chegam à banca com o pai, compram chiclete, folheiam gibis, mangás e revistas de games. Pouco antes de sair, um deles cutuca o outro e lança o olhar para as publicações proibidas. Gargalham. Entram no carro e pedem, já longe da senhora jornaleira: Pai, compra a revista da mulher com a bunda de fora! Mais gargalhadas.

 

 

 

Joffre e Daniela

Enquanto escrevia este texto, uma mocinha de nome Daniela, estudante de design gráfico, entra na banca, compra um sorvete, o “Estou na quadra”, livro da Fátima Bueno, e puxa assunto. Diz que morava em Taguatinga, mas que o sonho dela sempre foi vir para o Plano Piloto. Foi para o Cruzeiro e de lá para a Asa Sul. Vai a pé para o trabalho e ama esta cidade. “Por que as pessoas não entendem por que a gente gosta de Brasília?”, ela me pergunta.

Difícil de responder. É mais fácil e produtivo contar histórias de quem construiu esta cidade, como a que se segue:

Era noite e doía muito. O engenheiro Joffre Mozart Parada tinha uma tarefa inesperada, precisava abrir uma picada para chegar ao lugar onde, a partir de então, seria o território dos mortos.  Com a luz dos faróis do jipe, o goiano de Vianópolis delimitou o Campo da Esperança e traçou uma trilha que levava do aeroporto à ponta sul da Asa Sul.

Estava demarcado o lugar onde seria sepultado o corpo de Bernardo Sayão, amigo de Joffre, parceiros desde de antes de Juscelino tomar para si a decisão de construir Brasília. Ainda no começo dos anos 1950, Joffre já escalavrava  as terras goianas na condição de chefe do Serviço de Conservação e Melhoramento das Estradas do Estado de Goiás.

A estrada, rio seco que conduz a eterna busca por um outro lugar, a estrada movia os dois homens, Sayão e Joffre. Mais que a cidade, talvez. Mais que Brasília, quem sabe. Eram engenheiros-andarilhos, o primeiro mais inquieto, mais bandeirante; o segundo, mais interessado em decifrar a geologia dos novos lugares.

De Bernardo Sayão, muito se sabe. De Joffre, quase nada, embora o nada seja demasiado. Foi ele quem pôs no chão o projeto de Lucio Costa. Antes e mais que isso: ele esquadrinhou as fazendas do quadradinho e conseguiu delimitar cada uma delas, partindo de referências vagas e documentações dúbias.

Esse é o personagem das 548 páginas de “Uma luz na história”, livro de Nina Tubino lançado recentemente e disponível na Banca 308.  Foram 25 anos de pesquisa – desde a tarde de domingo em que a autora visitou o túmulo de Joffre, no Campo da Esperança que ele havia demarcado, e prometeu tirar o engenheiro do esquecimento.

Nina cumpre o prometido. Mostra que Joffre identificou as fazendas a serem desapropriadas para a construção da nova capital, demarcou o Plano Piloto, o Núcleo Bandeirante, marcou os furos para sondagens da barragem do Paranoá, identificou os locais onde havia jazidas de material de construção, locou  os primeiros acampamentos da Novacap. E ainda se aventurou em arqueologia: reuniu fósseis encontrados numa fazenda em Sítio d’Abadia, município goiano a 240 km de Brasília e os enviou ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), supondo serem de um megatério, a preguiça gigante que habitou as Américas há aproximados 20 mil anos.

O livro de Nina traz um mapa em página dupla, interiça, colorida. É o que ela considera o primeiro mapa do Distrito Federal já com as fazendas demarcadas.  De 1958, tem a assinatura de Joffre e de Janusz Gerulewicz.